A condição judaica no século XXI

O povo judeu deve ter clareza de que a disputa territorial é um paradigma a ser superado. Que sim, precisa ter um país, mas este deve ser realmente livre, inclusivo e multiétnico. No século XXI, cabe distribuir as riquezas. O resto é rapinagem

Foto: Edward Kaprov/El Pais
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Esse texto não é um trabalho acadêmico, teológico, filosófico, e tampouco procura provar uma tese. É um ensaio livre, uma reflexão, que procura construir um encadeamento de fatos e uma percepção de nosso tempo. Essa percepção, por sua vez, procura investigar a questão judaica nos tempos atuais (século XXI), condição essa tensionada pela matança indiscriminada do povo palestino promovida pelo Governo Netanyahu com a cumplicidade dos países de entorno. Seu intento não é traçar o que é certo ou errado, ainda que isso pudesse ser feito sem muitas sombras de dúvida, mas discutir dilemas da condição judaica atual e, quem sabe, apontar caminhos possíveis.

A meu ver, a condição judaica tem como cerne dois elementos estruturantes, e conectados:  a iconoclastia e o êxodo.

Comecemos pela iconoclastia. Na religião judaica não existem santos ou quaisquer imagens divinas. Existem espíritos, fantasmas, demônios, criaturas fantásticas, mas santos e divindades, não. Quem representa a divindade é a própria humanidade que testemunha o divino e escreve sua história a partir de seu embate com essa condição.

Isso quer dizer que, na religião judaica, qualquer um fala com D**s diretamente. Escrevo D**s pois, pela religião judaica, seu nome não pode ser pronunciado. Mas por que isso? Por que essa entidade é todas as coisas, e designar um signo para essa totalidade é estabelecer um limite para o seu significado e, portanto, um enquadramento construído pela própria linguagem. E aquilo que é tudo e também é cada coisa individualmente não pode ser algo definido. O singular e o plural se manifestam como unidade a cada momento de maneira sempre diferente na relação de cada um com essa condição.

Decorre desse princípio que a manifestação divina é algo em aberto e que se expressa de inúmeras maneiras, muitas vezes contraditórias. E considerando que ela se expressa na medida da compreensão de cada um, não há referencial externo comum, e portanto, tudo é negociado. Não existe um objeto a priori, só a relação entre objetos, que os constitui nessa condição relacional. O monoteísmo e o messianismo são reflexos dessa condição. O primeiro, como uma manifestação de uma unidade e o segundo como manifestação de uma esperança e de um permanente vir a ser.

Poderia se argumentar que o monoteísmo que determina a iconoclastia, mas podemos pensar que a impossibilidade de expressar o divino que gerou o devir iconoclasta, e que os próprios conceitos como monoteísmo e messianismo são armadilhas de linguagem que fixam uma imagem daquilo que jamais poderia ser sequer imaginado, mas que existe e se apresenta a todo momento.

O judaísmo propõe, portanto, um sistema de linguagem em que o significado é aberto e circunstancial. Não existe uma ordem à priori, mas uma coerência geral de contexto, e esse o contexto, por sua vez, é objeto de interpretação de cada um e socialmente construído.

Esse tipo de construção pode ser encontrada no kanji, japonês e chinês. Um Kanji é um sistema portador de significado sensível tanto aos seus elementos internos de composição quanto ao contexto em que está inserido, podendo assumir mais de um significado dependendo de onde é observado e das relações de contiguidade e vizinhança que estabelece com outros elementos e outros Kanjis. Esse significado aberto também é encontrado no Taoismo, ainda que aqui a dualidade se coloca como algo fundamental. Tal dualidade não existe no judaísmo, só unidade. Mesmo assim poderíamos dizer que o judaísmo é uma cultura oriental.

E isso se relaciona, por sua vez, com o segundo elemento estruturante da cultura judaica: o êxodo. O êxodo nasce da saída dos judeus do Egito. Essa saída se relaciona com a iconoclastia na medida que rompe com um determinismo, no caso, o patrimonial.

O povo judeu servia à uma economia de acumulação primitiva, agrária, no caso, em serviço ao dono da terra. Considerando que o faraó era a expressão do divino e da fertilidade, não havia terra fértil que não fosse a do faraó. Afirmar uma possibilidade de vida alternativa, portanto, implicava em abrir mão da relação com a terra e em abraçar uma relação aberta e dinâmica com o território, e por consequência, com a própria possibilidade de expressão do divino. O êxodo se estabelece como imperativo ideológico, portanto, como uma força de linguagem mobilizadora e coletiva, que resulta na primeira insurreição de massa sobre o poder constituído na história.

A construção contextual, e social, de um sentido frente à vida, de onde nasce a deterritorialização do êxodo, está no cerne do judaísmo, portanto. E ainda que encontremos isso em alguns povos originários, dentre os quais alguns nômades, há uma diferença: a desterritorialização judaica é uma contingência histórica, resultado de uma atitude de revolta que se traduz não em conflito, mas em uma procura de uma alternativa, de uma trajetória de procura. No caso, por uma identidade manifesta numa terra hipotética, originária, que, no caso, percebeu-se que não era só sua.

Isso implicou em migrações em massa, no estabelecimento de redes comerciais, em assentamentos precários em locais onde a propriedade da terra não era permitida, e em novas formas de acúmulo de riqueza e de conhecimento. E também na identificação desse povo como invasor, impuro, parasitário, uma praga que está em todo lugar, em diversos países, e que por isso deseja, em realidade, argumentavam, dominar o mundo. O êxodo instalou um conflito permanente com o regime patrimonial dos povos hospedeiros, e também uma fantasia, entre os migrantes, de uma terra própria onde pudessem manifestar sua identidade sem medo.

O Shoá (holocausto) foi um marco, o ápice do patrimonialismo expresso como higienismo social, atingindo tudo que não fosse branco, cristão e fizesse a menor sombra em sol forte. Decorreu da superação dessa desgraça uma oportunidade histórica de se estabelecer o Estado de Israel. Que estado seria esse, porém? Ora, um Estado como qualquer outro, cuja base constituinte herdada da Inglaterra é, adivinhe, patrimonial.

O conflito patrimonial, constituinte da identidade judaica, que antes existia fora dela passou a existir dentro dela, se entranhou. O judeu passou não mais a desejar se integrar onde estivesse, a aspirar um universalismo inclusivo. Recalcou esse desejo e o transformou em medo atávico e permanente de perder “o seu lugar”, seja ele qual fosse.

Justamente o povo que mostrou ser possível existir de outras maneiras e superar a escassez para além da lógica patrimonial, hoje, em Israel, defende o patrimonialismo. O cerne desse conflito reside, portanto, na ideia de que território e povo são correspondentes e constituem uma identidade única e exclusiva, e a partir daí, uma relação de posse. Só lembrando que “Um povo, uma pátria, um líder” foi, além de um bordão nazista, uma ideologia.

Mas isso faz qualquer sentido? Imagine só, pense bem, a avenida paulista tem uma identidade atrelada a qual população? A que mora lá? A que trabalha lá? A que a visita como turista ou como consumidor? Ou ainda, a que vive alhures mas que a tem como referência? A todas elas, oras… Pois bem, parece claro que um território pertence a quem atribui significado e valor a ele, e que uma gestão democrática permite o convívio de diferentes identidades e pertenceres, incluindo minorias e aqueles que lá não vivem, mas passam por lá.

Um leitor atento percebe que estamos falando desde o início de disputa por acesso à recursos singulares, portanto não rivais e em condições de escassez, de economia do setor público, portanto. E que nesse contexto o espaço compartilhado tem papel crucial para estruturação de um espaço político, viável social e economicamente.

O Sinai tem uma história anterior à constituição dos Estados nacionais e sempre foi rota de passagem, lugar de riquezas e de disputa. As cruzadas são um exemplo. A quem pertence aquele território? Pela lógica acima, a quem a ele atribui significado e valor. Nesse contexto, pergunta-se: até que ponto é racional levar a cabo uma disputa pela sua exclusividade de posse? Posse faz sentido? O usufruto não viria antes? Poderia ser compartilhado? Em que medida?

Não se trata só de um problema entre palestina e israel, portanto, mas um problema árabe israelense como um todo. Infelizmente o povo judeu caiu numa armadilha da história, atrelou o sionismo ao patrimonialismo e com ele, a rapinagem. O que vemos ultimamente é só o desdobrar dessa opção.

O povo judeu deve ter clareza que a disputa territorial é um paradigma do século XX a ser superado. Que sim, que o povo judeu precisa ter um país, mas que seu país deve pertencer a um território além do seu tempo, um Sinai realmente livre, inclusivo e multiétnico. No século XXI, cabe distribuir as riquezas do usufruto de todo o Sinai permitindo o convívio pacífico de diferentes identidades, incluindo minorias. Como fazer isso? Estabelecendo um fundo significativo para essa finalidade, para desenvolver todo o Sinai, para todos, o resto é rapinagem. É uma proposta radical em resposta a uma conjuntura crítica. Essa é a melhor opção ou a opção correta? Não sei, mas é uma opção que fala com a identidade judaica, e que permitiria ao povo judeu sair dessa armadilha da história. Uma opção que remete ao direito dos judeus viverem em qualquer lugar do planeta, e do mesmo modo, compartilhar esse direito com os demais povos.

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